Com o novo momento que vive o país após a derrota do governo Bolsonaro e a vitória do campo progressista através das urnas é necessário que façamos um profundo debate sobre o país que queremos. O Brasil do futuro e sua reconstrução ainda são projetos, em alguma medida, em aberto.
Ainda que estejamos avançando muito em retomar um país com políticas públicas de enfrentamento à fome, com retomada do protagonismo no cenário internacional e até mesmo um aceno à reindustrialização, ainda temos no congresso nacional e até mesmo dentro do governo algumas contradições postas que não nos colocam em uma posição de conforto: é preciso que tenhamos uma opinião contundente e uma proposta assertiva sobre o que queremos para o país. A UNE tem protagonizado no movimento estudantil e educacional o debate sobre reconstruir o Brasil através da educação e este não poderia ser mais acertado, mas é preciso que tenhamos clareza do que buscamos, seja de processo, mas também de objetivo, e qual a educação que queremos e para o que queremos.
Sem sombra de dúvidas partimos da discussão do caráter de educação emancipadora, que forme cidadãos com pensamento crítico e capazes de incidir na realidade e transformá-la. É preciso que tenhamos em todos os níveis de educação e em todas as áreas de conhecimento a clareza do papel que cumprem na sociedade brasileira para o seu desenvolvimento e soberania do país. Mas atentemo-nos para não cairmos em um mero debate produtivista, seja da produção científica e tecnológica ou até mesmo no campo das humanidades, não se trata disso, pelo contrário, é necessária uma visão estratégica do que é produzido e para quem é produzido, afinal, de nada nos adianta um grande avanço científico que não possa ser aplicado para a população num geral.
Os engenheiros agrônomos antes de pensarem técnicas de melhoria das plantas forrageiras que serão exportadas, precisam estar a serviço de evitar que dentro do nosso país ainda haja fome e má distribuição de alimentos ou que o sul, por exemplo, siga sofrendo com a estiagem perdendo parte da sua safra todos os anos. O mesmo vale para farmacêuticos, médicos, cientistas sociais etc.
A partir dessa reflexão de propósito precisamos encarar a Universidade que temos hoje e começar a destrinchar sua estrutura para traçar paralelos dos acertos, mas também do que ainda são debilidades a serem superadas.
Segundo o censo de 2020, o ensino superior privado concentra no Brasil mais de 77,5% das matrículas, mas é nas universidades públicas, sobretudo federais, que há a produção de mais de 90% da ciência do país. Temos também as Universidades estaduais e institutos federais que são responsáveis pela interiorização e desenvolvimento regional nos interiores do país. Em um país de dimensões continentais com regiões com especificidades e culturas tão diferentes e que possui mais de 9 milhões de estudantes matriculados no ensino superior em modelos distintos de ensino como construir uma síntese de reforma universitária que aborde elementos centrais para a caracterização dessa Universidade construtora de futuro a partir dos interesses nacionais? Esse é o maior desafio do movimento estudantil e não será fácil, mas sem sombra de dúvidas é a União Nacional dos Estudantes que reúne a capacidade, a partir da sua pluralidade, alcance e retórica de defesa do Brasil que mais tem capacidade de construí-la.
A caravana da UNE para debater a reforma universitária passará por diferentes cidades, modelos de universidades, biomas, climas e ao fazer um processo não apenas de fala ou escuta, mas sim de troca com milhares de estudantes brasileiros sobre os problemas do cotidiano das suas instituições de ensino, mas também de como resolvê-los à partir da reforma universitária. E não há nenhum problema que nos assole no cotidiano da Universidade que não possa ser abordado em uma proposta de reforma, mas também de políticas firmes de estado que priorizem a educação, como por exemplo a assistência estudantil e a transformação do PNAES (Plano Nacional de Assistência Estudantil) em lei, garantindo investimentos que na Universidade permitirão maior oferta de bolsas, ampliação de RUs ou moradia estudantil.
Para as obras inacabadas e problemas de infraestrutura queremos um novo programa de estruturação das Universidades e institutos federais: a destinação de recursos com a finalidade de investimento em infraestrutura das universidades públicas.
Não podemos esquecer da urgência do debate sobre a regulamentação do ensino superior privado. Precisamos criar mecanismos de regrar e fiscalizar as instituições privadas de ensino, mas é importante que essa regulamentação e fiscalização estejam a serviço da melhoria na qualidade do ensino, portanto, não podemos permitir que essa pauta seja usurpada por setores que representam os interesses de grandes corporações da área da educação. Aliás, é preciso reforçar: nós precisamos proibir o capital estrangeiro na educação. É frontalmente contraditório pautar um ensino superior a serviço da nação quando ele é ofertado por multinacionais sem qualquer vínculo com o país.
Vale ressaltar que o debate apresentado até aqui não é novo, há pelo menos 6 décadas a UNE vem construindo e debatendo um projeto de educação superior, e feliz ou infelizmente, pouca coisa mudou nas reivindicações de lá pra cá, não por falta de renovação das pautas dos estudantes, mas por falta de mudanças mais radicais.
Isso poderia nos desanimar, afinal, há tantos anos lutamos por essa pauta, o que mudou? Uma mudança significativa da década de 60 para os dias atuais é que grande parte das pessoas que farão ativamente o debate sobre a reforma universitária são aqueles que há 60 anos atrás sequer estavam nesse espaço. Nós avançamos muito na democratização do ensino superior, e hoje os filhos da classe trabalhadora também podem fazer esse debate, portanto, não há com o que desanimar, o futuro é promissor.
Ademais, a reforma exige muita profundidade sobre o sistema educacional brasileiro, mas também clareza de onde e como queremos chegar. A caravana da UNE trará, através de seus documentos, grandes debates e resoluções sobre nossas pautas, por ora, deixo algumas pautas que considero fundamentais que possamos levar em consideração e que sirvam para provocar um debate mais amplo sobre o que as estrutura:
- Curricularização e requisitos mínimos para formar não apenas novos profissionais, mas também cidadãos: independente da área de formação, todos devem ter noção de estrutura de sociedade e o papel que cumprirá nela, sendo assim é importante que haja componentes curriculares comuns a todos os estudantes do ensino superior, como por exemplo: Sociologia básica e/ou aplicada a sua área, História e formação social e econômica do Brasil, e LIBRAS. O Brasil possui duas línguas oficiais, portanto, todos os brasileiros e profissionais precisam ter domínio de ambas;
- Com a mudança da cara do ensino superior no Brasil já feita, mas que também está por vir, a demanda por assistência estudantil e políticas de permanência é ainda mais latente. Seja no ensino superior público ou pago é necessário defender uma política contundente e efetiva de assistência estudantil através da transformação do PNAES em lei, assim como o cumprimento dos 10% de recurso do PIB para a educação;
- Legislação de prevenção e combate a violência de gênero dentro das Universidades com a implementação de órgãos de controle dos casos;
- Revogação da portaria dos 40% de EaD no ensino presencial;
- Garantia da autonomia universitária e aprofundamento da democracia das Universidades através do fim da lista tríplice e da paridade nas eleições para Reitoria e conselhos e câmaras da Universidade. É preciso garantir que essas políticas sejam implementadas estatutariamente em todas as Universidades federais à partir de portaria do MEC (Ministério da Educação) e mudança na Lei;
- As Universidades federais carecem de reformas estruturais de infraestrutura e também finalização de obras inacabadas e construção de novos prédios, à partir disso defendemos a criação de um recurso especial destinado para investimento em infraestrutura dessas instituições, um programa chamado “Reconstruindo as Universidades” e que tenha investimento permanente através dos recursos do royalties do petróleo proporcionais ao ensino superior. Que dentro desse programa esteja previsto o investimento também em novos laboratórios, parques tecnológicos e polos universitários;
- Se a Universidade pública tudo de ciência produz, a ela tudo pertence! Queremos a elaboração e aplicação de uma lei que garanta que, mesmo com investimento do setor privado, a patente e exclusividade de uso do que é produzido nas universidades seja de propriedade intelectual das mesmas;
- Programa de expansão de universidades estaduais considerando aspectos atuais da conjuntura econômica, social e geográfica. Revisão e criação de cursos que atendam a demandas locais, por exemplo: criação de cursos de graduação e programas de pós graduação que envolvam a formação de profissionais capacitados para lidar com problemas causados pelas mudanças climáticas à partir das suas especificidades em cada região, ou de cursos de turismo em regiões em que se pode haver maior exploração deste setor econômico;
- Modelo tripartite de investimento em universidades estaduais (Federação, estado e município);
- Regulamentação do ensino superior privado com eixos que perpassam a busca por qualidade de ensino, mas também de requisitos de formação que também sirvam aos interesses do país. Para isso alguns pontos fundamentais da regulamentação são: estabelecimento de um teto carga horária EaD em cursos presenciais e semipresenciais, investimento em pesquisa e extensão, implementação do currículo comum, comprovação de retorno para a sociedade com serviços (ex: clínicas veterinárias e hospitais universitários), extensão e/ou pesquisa destinada à comunidade na qual está inserida;
Ao final da caravana haverão debates ainda mais profundos e novos tópicos para refletirmos e pautarmos. Sendo assim, reforço a convocação para que todos os estudantes brasileiros se somem a essa construção. A UNE reúne futuro e tradição!
*Gabriela Silveira é tesoureira geral da UNE